terça-feira, 4 de agosto de 2009

GINA CARANO "BOXE FEMININO"


Depois de derrotar homens, lutadora enfrentará brasileira

Gina Carano vive em um beco no qual todas as casas parecem iguais. Como companhia, ela prefere dois pitbulls e um criminoso condenado. Não frequenta casas noturnas, faz poucos amigos e dirige um Impala fedorento. Jamais conseguiu um diploma universitário. Nunca ouviu falar de Chuck Berry. Quando conversa com alguém, não presume que a pessoa deva saber quem é ela.
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Ainda que a austeridade seja muitas vezes um elemento indissociável da vida dos jovens lutadores, Carano conquistou a espécie de renome que resulta em reportagens fotográficas em revistas populares, vitórias em concursos de popularidade online e até mesmo boatos malévolos sobre a existência de um vídeo que a mostra fazendo sexo.
Aos 27 anos, ela se tornou a face feminina das artes marciais mistas (conhecido como vale tudo no Brasil), e está conquistando nos ringues a sua respeitabilidade, em um esporte dominado por homens e que tampouco conseguiu afirmar sua respeitabilidade no mercado esportivo mais convencional, até o momento.
"Creio que qualquer outra pessoa teria perdido a cabeça já há muito tempo, especialmente uma pessoa que não aprecia muito receber tanta atenção", diz Kevin Ross, o amigo que apresentou os esportes de combate a Carano. "Ela é uma pessoa que aprecia muito a solidão".
Ao construir uma carreira como lutadora aproveitando oportunidades um tanto forçadas, como um papel em um reality show de TV ou uma passagem pelo programa de combate "American Gladiators", Carano terminou por se tornar a figura que define um momento de definição também para seu esporte, cumprindo a um só tempo o papel de militante feminista, exemplar de teste, truque de marketing e estrela em múltiplas plataformas.
Do lado de dentro da jaula onde os lutadores da categoria combinam elementos de kickboxing, luta greco-romana e ju-jitsu de uma forma que continua proibida no Estado de Nova York devido à brutalidade dos combates, Carano demonstrou disciplina, resistência e força no ataque. Os organizadores das lutas a chamam pelo apelido "Convicção".
No ano passado, escalada para o primeiro combate misto de artes marciais transmitido por uma rede de TV em horário nobre, ela se destacou entre os lutadores homens, a ponto de os combates deles terminaram caracterizados como anticlimáticos, exagerados, e possivelmente até como armações, na opinião de alguns.
Com base no desempenho que exibiu naquela oportunidade, ela foi convidada a assumir o papel principal em uma apresentação no canal Showtime em 15 de agosto, e desta vez os homens é que terão papeis secundários. Em materiais publicitários que fazem referência a sua beleza, os organizadores prometeram nada menos que "uma das mais aguardadas batalhas de todos os tempos".
No HP Pavillion, em San Jose, Califórnia, Carano (sete vitórias, zero derrota) enfrentará Cristiana Santos, do Brasil, que tem sete vitórias e uma derrota. A adversária atende pelo apelido "Cyborg", e seu talento em agarrar e reter as adversárias é acompanhado por muita agressividade e improvisação.
Em um vídeo disponível na Internet, Santos mostrou a um entrevistador como imobilizar alguém, e ou o apanhou realmente de surpresa ou o jornalista era um excelente ator. Carano e Santos dividirão uma bolsa de US$ 200 mil, por um combate de cinco rounds na jaula. A vencedora ficará com o título em uma nova categoria, para mulheres com peso de até 65 quilos.
A principal liga de artes marciais mistas, conhecida como Ultimate Fighting Championship (UFC), não está envolvida no combate. Dana White, o presidente da organização, abandonou as negociações com Carano, depois de concluir que não havia talentos suficientes à disposição para sustentar uma divisão feminina completa, disse um porta-voz da organização.
Em lugar disso, uma companhia de promoções chamada Strikeforce está organizando a luta como parte de seus esforços para conquistar algum espaço no mercado cada vez mais próspero das artes marciais. Com graus variáveis de sucesso, outras empresas iniciantes vêm tentando conquistar distinção, como uma liga que promove lutas em equipe e outra dirigida aos lutadores hispânicos. No caso da Strikeforce, a decisão foi a de promover as lutas entre mulheres.
"Creio que elas sejam capazes de prover o entusiasmo e a competitividade necessários", disse Mike Afromowitz, porta-voz da Strikeforce. "É disso que nós e o esporte precisamos a fim de termos mulheres como principais atrações em futuros combates".
Algumas mulheres que praticam esportes mais tradicionais apreciam o destaque isso pode propiciar. "Qualquer exposição que beneficie as mulheres em esportes de combate é provavelmente boa, em termos gerais", disse Christy Halbert, técnica da equipe de boxe feminino dos Estados Unidos, que está em campanha para que suas comandadas possam acompanhar os boxeadores homens à Olimpíada de 2012. "Existem muitas boxeadoras pelo país, e elas merecem a oportunidade de ganhar a vida praticando o esporte que escolheram".
O gerente geral de programação esportiva do canal de TV a cabo Showtime, Ken Hershman, diz que Carano vai enfrentar "muita pressão, mas é exatamente assim que deve ser, certo, para quem deseja ser a principal atração de um esporte?"
Para Carano, segunda filha de um armador reserva do Dallas Cowboys, o time de futebol americano, a válvula de escape preferida é uma vida interior muito rica. Ela costuma viajar para Chicago só para poder andar de carro visitando bairros nos quais as casas são todas diferentes umas das outras. Passeia com os cachorros. Ajuda o seu companheiro de casa, um velho amigo que serviu uma sentença de prisão por dirigir embriagado e outros delitos não violentos, a melhorar sua situação por meio de aulas de computação. Estuda as sonatas de Beethoven. E fala de seu esporte com uma mistura de humildade e confiança.
"Quando eu comecei", ela conta, "eu era definida como o projeto preferido do canal Showtime. Eles me diziam que me ajudariam, que me colocariam e tal e qual programa. E eu pensava que trabalho, me exercito, como todos os demais lutadores. Mas eles gostam de dizer a você tudo que você não é. Gostam de manter as pessoas por baixo, para que possam extrair mais delas pelo dinheiro que pagam. Quando as pessoas gritam seu nome, você sabe que estão torcendo. E por isso deixei de ser o projeto de estimação e passei a ser a principal atração em um combate. Para mim, é um marco".
Mas por que lutar?
Na entrevista, em uma lanchonete perto de sua casa, Carano relatou os curiosos aspectos de uma criação religiosa em Las Vegas. Ela estudava em uma escola particular perto da Strip. Halloween era proibido. Sua família saiu do cinema durante o filme "Forrest Gump" por conta das linguagem pecaminosa. As irmãs dela pareciam esbeltas e bonitas sem que fizessem qualquer esforço, até que a mais velha submetesse todo a família a uma odisséia de sofrimento relacionada a drogas.
Matriculada no curso de psicologia da Universidade de Nevada, Carano estava 15 quilos acima do peso, sem rumo, e vivia bebendo e seduzindo os namorados das colegas, até que um amigo, professor de muay thai, lhe deu uma bronca e disse que a vida dela era um lixo. E a igreja das narrativas de redenção atlética encontrou mais uma alma perdida.
"Eu só presto contas a Deus e à luta, e ocasionalmente à minha família", diz Carano. "Nada de relacionamentos, namorado, namorada. Só o esporte me manteve concentrada".
Com o tempo, ela começou a viajar pelo mundo combatendo, travando lutas na Tailândia e desconsiderando as preocupações dos familiares. Não demorou para que começasse a ganhar dinheiro com isso. E também para que decidisse ter encontrado uma missão na vida.
"Queria que fosse mais fácil para as mulheres chegar a um ginásio e treinar, porque isso mudou minha vida", diz. "Moro em Las Vegas, onde é difícil encontrar homens que não pensem em você como stripper ou como um objeto. Gosto do treinamento, do estilo de vida. Acordo e me concentro em melhorar. Quando alguém está tentando arrancar sua cabeça a socos, os outros dramas da vida diminuem".
À medida que se aproxima a grande luta pelo título, as distrações se acumulam. Ela participa de sessões fotográficas, viagens de promoção a Nova York, conversa com especialistas em promoção.
Para treinar, ela conta com uma equipe de seis técnicos, comandados por Randy Couture, ex-campeão da Ultimate Fighting Championship. Adquiriu uma cicatriz sobre o queixo, uma mancha roxa no olho, e calos espessos sobre os nós dos dedos.
Certa manhã do final de julho, Carano foi ao ginásio em que treina em Las Vegas para uma sessão com o técnico de musculação que apelidou de "Satã", porque ele é impiedoso. O lugar tem cara de prisão, com cercas metálicas em torno dos aparelhos. Incluídas a recepcionista e uma fotógrafa, havia menos de cinco mulheres presentes. Longe de Carano, e perto de um ringue, um grupo de adolescentes trocava piadas.
Por duas horas, ela se alternou entre máquinas de peso e esteiras, suando até encharcar a faixa de cabelo que trazia. Enquanto "Jump", do Van Halen, estrondava dos alto-falantes, o treinador ordenou que ela fizesse uma "rodada de velocidade". Ao final, ela despencou sobre um pneu de borracha. E o combate, disse mais tarde, não seria mais fácil que a preparação.
"Venho carregando essa coisa das mulheres nas artes marciais há dois anos", ela diz, "e isso é muito. Seria ótimo vencer, conquistar o cinturão. Mas isso significaria que o fardo continuaria comigo".
Tradução de Paulo Migliacci.
The New York Times

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